quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

A BAILARINA - por Thomaz Campacci

Mais um dia se passava para a bailarina. O céu, azul à tarde, ganhava primeiro tons alaranjados que se escureciam aos poucos, até aparecerem pequenas pinceladas de roxo; lá pelas sete e tantas, as cores haviam desaparecido, e tudo que se via era um denso vazio, exceto pela luz da lua e das estrelas. Pela janela, via o dia desfalecer. Ficava em seu quarto, ora dançava, ora escrevia, ora apenas apreciava a formosura do céu; via belas figuras na junção das estrelas, abismos entre uma e outra. O cansaço vinha, o corpo amolecia e ela ia para a cama. Ainda que tivesse vontade de dançar um pouco mais, seus langores eram mais fortes e a adormeciam, para que despertasse algum tempo depois para o mundo que ela tanto gostava. Ela dançaria a noite inteira, todas as noites, todos os dias, se lhe fosse possível. Encontrava na dança uma resposta para a maior parte de seus pesares, um sufrágio para conviver com seus anseios, os deleites da alma.
Já de camisola, apagou a luz do quarto e adentrou um casulo de cobertas roxas. Não fazia frio nem calor lá fora. Contudo, a bailarina precisava aquecer seu coração dos perigos mundanos, e para isso, nada melhor que se refugiar em sua cama. Adormeceu logo. Havia dançado grande parte daquele dia, seu corpo estava cansado, mas sua mente, ainda ágil e sonhadora, poderia lhe proporcionar uma bela página em seu diário no dia seguinte. Os primeiro minutos foram silenciosos. Enquanto dormia, não imaginava o que lhe reservaria seu acordar.

Assim como ela, seu soldadinho não era alto. Tinha os cabelos louro-escuros cortados muito curtos e a barba sempre rente à face. Seu rosto de boneco costumava ser muito expressivo, olhar profundo, e encontrava no gestual da bailarina um aceno ao seu sorriso; em outros momentos, tão propositalmente vazio e calado, provocava certo desgosto colérico nos olhos dela. Não fora a beleza que a vaidade conferia àquele príncipe que fizera a bailarina apaixonar-se por ele. Seu sentimento era exaltado pelas formas mais singelas de apreciação e devoção, e independiam de qualquer aspecto externo que tivesse o soldadinho.
Este soldado não era belicoso como os outros, era um bailarino. Como se estivesse vestido para a valsa de um nobre jantar, o traje de soldadinho de chumbo, que tanto a cativava, era simplesmente uma segunda pele, uma fantasia de dança, aliás, desenhada por algum competente alfaiate, pois nada tinha dessas superfluidades libertinas de que são feitas as roupas de carnaval. Ao contrário, a veste do soldado, na maior parte de um branco brilhoso com azul-acinzentado e dourado, remetia a heróis romanescos e também a luxuosos espetáculos de balé do século XX. Tudo naquele falso-soldado a encantava. Compartilharam durante dois anos o mesmo palco, dançaram a mesma dança; ainda que estivessem sempre conflitando, ele sempre a fazendo chorar, parecia que o sentimento lhes falava mais alto, então voltavam logo a amar-se, às carícias próprias dos amantes; foram felizes em sua inconstância.

Acordou de sobressalto, assustada com o grito de uma criança. Era sua irmãzinha, seu pequeno tesouro, a garotinha rechonchuda dona daquele sorriso vivo que tantas vezes lhe tirara do abismo. A menina chamava por ela, batendo sem piedade na porta do quarto, convocando-a para o café-da-manhã. Ela resistiu por alguns minutos, olhou o quarto em sua volta; a escrivaninha e a cômoda estavam iluminadas pela luz que escapava pela veneziana e adentrava seu quarto.
Depois do café ela saiu de collant, a saia volumosa de tule lilás. Ia ao encontro de seu soldadinho. Passou pelas ruas e avenidas que ela tanto conhecia. Sabia cada pedaço do caminho, cada árvore da paisagem, as mudas que estavam ou não floridas. Ia sempre ao encontro de seu amante naquele parque, a praça do chafariz em que uma bailarina e um soldado, ambos de chumbo, esguichavam água; a praça que ousavam dizer ser “deles”. Avistou-o e entristeceu-se quando viu, de longe, que o soldadinho não era mais um soldadinho. Não estava com sua vestimenta, aquela que o fazia ser da bailarina. Ele, calmo de lábios e triste no interior, lhe disse que havia crescido, e que aquela roupa lhe causava demasiado aperto e desconforto. O semblante dele estava mudado. Seus olhos não a penetravam mais, seu sorriso era lânguido e displicente. De um dia para outro, como se houvesse sido anteriormente prometido a alguém, ele não era mais ele e nunca mais voltaria a ser par da bailarina.

Foram dias angustiantes para ela. Foi difícil conviver com aquela idéia de perda, como se os céus o tivessem levado para um canto tão distante, como se tivesse sido morto em alguma batalha da qual nunca participara. Porém, saber que ele estava lá, em algum lugar, tão ou mais vivo que ela, era o que mais doía. Prostrava-se contra os joelhos e chorava como criança sem brinquedo, bailarina sem soldadinho. Encontrou mais uma vez, na dança, um refúgio que assistia as suas aflições de amante não mais correspondida. Punha para tocar, muito alto, canções ou melodias de amor que a faziam chorar, cercando-a daquele mundinho tão próprio dela. Escrevia às vezes. Sempre que se lembrava, mergulhava em romances ou novelas, naturalmente românticas, de personagens que, como ela, padeciam de amor.
Ela preferia Liszt a Mozart, Goethe a Burroughs. Talvez porque gostasse de sonhar, porque gostasse de sentir em seu âmago as delicadezas de outros corações, como o seu, amargurados. Encontrava em Os sofrimentos do Jovem Werther um pouco de si mesma, suas cartas de amor nas cartas dele; o sentimento que nutria por aquele soldado-bailarino era tão dilacerante quanto o que ela lia naquelas linhas impressas no papel e em si mesma. Sabia, apesar da dor que lhe causava, que suas inúteis lástimas poderiam nunca cessar caso ela não combatesse aquele amor parasita de seu íntimo, que cada vez mais se apoderava dela. Mas gostava de sofrer, de amar. Era tal o que a fazia sentir-se viva. O coração que nunca amou, ela pensava, nunca caminhou por estes vales, tão maravilhosos e ao mesmo tempo hediondos, que tanto encantam, mas fazem-nos sofrer; quem nunca amou nunca viveu de verdade, pois levou uma vida regulada demais, e viver, para ela, era um sofrimento eterno, pincelado de alegrias intermitentes, que só eram tão boas por serem assim. Era feliz em seu sofrimento, e ainda que não fosse, nada fazia para afastá-lo. Tentou outros soldadinhos, nenhum foi como aquele. Procurava encontrar neles a figura do antigo, o mesmo sorriso, o mesmo cheiro. Nunca obteve sucesso. Porém, é em seu bailar de consternações que encontra a si mesma. É nessa valsa, que parece ser eterna, de uma bailarina sem par, ora chorando, ora sorrindo, que se representa. E, ainda que tanto lhe digam para esquecer o soldadinho, ainda que repreendam seu modo de sofrer e de amar, ela não cessa. Talvez haja desistido daquele, mas logo encontrará outro. A bailarina precisa de um soldadinho pelo qual chorar, e são seus sofrimentos de amor que a fazem ser quem é.

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Esse texto foi meu amigo Tho que fez pra mim ... e eu agradeço muito .
Me fez borrar a maquiagem de bailarina ...